Exposição dos projectos dos artistas convidados HElena Valsecchi e David Correia Gonçalves

 Catalogue

Textos da autoria do curador João Silvério.

A exposição das obras dos dois artistas nas Residências Artísticas da RAMA pode ser entendida como uma experiência de regresso ao contexto iniciático do lugar. Esta iniciativa, a primeira, pretende proporcionar um mês de trabalho a artistas que integraram o programa de residências.

HElena Valsecchi

O trabalho de HElena Valsecchi (Novara, 1976)1 inscreve-se numa reflexão estética e espiritual em torno de uma ideia do sagrado enquanto experiência do mundo e da sua percepção introspectiva. Neste âmbito, o conceito de numinoso, derivado do latim “numen” e atribuído ao filósofo e teólogo alemão Rudolf Otto, é central na pesquisa que Valsecchi desenvolve. A meditação e as caminhadas em diversos locais que compreendem uma relação de proximidade e de fusão com a natureza, mesmo quando esta é hoje uma memória primordial que ultrapassa a experiência do presente, são práticas da artista estribadas neste conceito. Esta ideia de numinoso coloca-nos entre o mistério e a possibilidade da sua revelação interior, e assenta numa reflexão e num estado de vigília interna que exalta uma austeridade e um estado de ascese que transita entre uma auscultação fenomenológica do mundo e a sua inexprimível plasticidade dada à palavra. As obras de Valsecchi procuram essa possibilidade de ligação, fluída, mas fragmentada. Esta ideia de fragmentação está ligada a um sentimento, uma intuição, que se divide entre a parcialidade da experiência do sujeito e a condição universal e infinita dessa experiência.
Uma das obras expostas, parte de um projecto site specific, foi trabalhada no período da sua primeira residência na RAMA, em 2021, intitula-se "La Nostalgie du Paradis", e é exemplar do processo de reflexão e materialização da sua prática artística. Diferentes formas em papel, recortadas à mão foram colocadas sobre pedras na orla costeira da zona oeste de Portugal, local de residência da artista. A imagem da superfície do papel une a textura das pedras, sobre as quais os papéis foram moldados, e a infinitude do céu, dois elementos pintados a aguarela que, sobrepondo-se, criam uma ideia de espelhamento e reflexo, mas também uma sugestão de transparência sugerindo a união da terra e do céu2. De certo modo, a assunção desta reunião pode convocar, entre outros, o mito da criação do Olimpo entre Urano e Gaia, entre o Céu e a Terra. Esta narrativa inscrita na antiguidade clássica na Teogonia de Hesíodo, primeiro poeta oral grego, sugere também um sentimento nostálgico sobre o mistério da totalidade primordial do universo. Esta obra coloca-nos perante a tensão poética do seu trabalho na experiência do lugar e na sua transição para a materialidade da obra onde concorrem de um modo quase contraditório, a metodologia da execução e a liberdade formal da mancha cromática. Esta duplicidade está plasmada na prática do desenho, que se desenvolve no painel central da exposição, nas páginas do livro de artista3, nos desenhos de paisagens orgânicas executados com uma solvência de sangue menstrual da artista, união do seu corpo com a terra na sua representação, fendida, como um ventre originário. Mas ainda outros desenhos, quase analíticos e abstractos que registam os itinerários das suas caminhadas, entre a memória do percurso do corpo e, pela transparência do suporte, este mesmo percurso no mapeamento de uma ferramenta digital, o Google maps. Este mapeamento e sua transitoriedade visual, por sobreposição, derivam ainda em duas esculturas em vidro, um processo mais conceptual, no sentido de corporalizar o que é orgânico em ecrã, que se desdobra em si mesmo, como uma alusão ao numinoso, dado a uma contemplação visual concentrada e a limite, invisível enquanto registo da sua totalidade. E o uso de uma outra ferramenta, autoportante, o smartphone, num registo de vídeos de muito curta duração, onde a artista caminha e nos dá a ver fragmentos, passadas, caminhos que só a sua experiência conhece e onde nos reencontramos, como outros, noutros caminhos.

1. @instagram helena.valsecchi
2. Sobre as referências a esta obra no contexto da pesquisa da artista , por favor ver https://elenavalsecchi.com/la-nostalgie-du-paradis/
3. Imagem da capa do livro de artista: página do livro das horas de Bonne de Luxembrourg (cerca de 1348-1349) da autoria Jean Le Noir)

David Correia Gonçalves

Os desenhos e esculturas de David Correia Gonçalves (Porto, 1987)1 desenvolvem-se como um inquérito à experiência do corpo. No seu trabalho, o desenho e a escultura são duas formas diversas de expressão artística que se regem por práticas e metodologias semelhantes, como por exemplo a fisicalidade como executa o desenho a grafite, a modulação do barro e a sua ligação a matérias e objectos de produção industrial, ou a fragmentos de objectos de elevado grau de dureza e, por vezes, a junção do desenho e da escultura numa mesma obra.
Este processo de trabalho encontra na visita a pedreiras de extração industrial de matéria prima, inicialmente cerca de 2016/17, uma experiência do corpo do artista com a escala, a fragmentação, a clivagem e o talhe das paredes colossais na profundidade das pedreiras. Se pensarmos nestes espaços como meros repositórios de matéria prima, estamos a emudecer e a ocultar todos os matizes de uma expressão do mundo natural. A pedreira, enquanto processo industrial, remete para uma ideia matricial de natureza, geológica, sujeita a uma transformação irreversível, tão próxima da memória e do desejo dessa ideia de um universo natural, contudo tão distante pela acção humana. Quando observamos os desenhos de Correia Gonçalves somos imediatamente afectados por uma massa e uma densidade háptica que apela ao nosso corpo na inscrição do corpo do artista. Esta duplicidade entre relações corporais sujeita-nos a uma ideia de movimento, seja nos desenhos densamente trabalhados a barra de grafite, de grande escala, ou nos livros/esculturas que o artista vem desenvolvendo nos últimos anos. Estes livros têm diversos formatos, de bolso, de formato médio, e um livro com a dimensão de um corpo humano, do corpo do artista, que está a ser talhado, construído, em processo de trabalho como um work in progress que vai intergar alguns dos desenhos que estão presentes nesta exposição. É nesse processo transformador que a dobra, o corte, a colagem, o vinco, e a encadernação nos convocam para uma ideia de biblioteca, e deste modo para uma ideia de temporalidade. Contudo, estes livros de artista que têm como base o desenho, são escultóricos na sua forma e na sua funcionalidade transmutada porque contém partes de barras de grafite de diferentes dimensões de acordo com a dimensão de cada um dos exemplares. O artista atribui-lhes uma designação: “livros de obstáculos”. Ora para cada obstáculo opõem-se um corpo e uma tensão na ultrapassagem deste. E esse corpo, a quem está vedado o acesso ao folhear do livro, é o nosso corpo que é reconfigurado na memória de uma acção apreendida, que é como usar, ver e fruir esse modelo da cultura universal que se designa como livro. David Correia Gonçalves desafia-nos a reconfigurar a nossa linguagem visual, as diversas gramáticas que organizam significações, tais como por exemplo a ideia de obra de arte, o que é um desenho, uma escultura, o tempo, a portabilidade e assim a aptidão e condicionamento do nosso corpo, e as condições de possibilidade da experiência estética, na esteira de uma linhagem de artistas que remonta às primeiras vanguardas do século XX.
Observemos as esculturas/desenhos na tensão e na transitoriedade do corpo que as/os confronta. A sua perenidade é associada à escultura, mas a sua morfologia é como um paradoxo, entre a delicadeza do desenho e a densidade mineral, por vezes de matiz ferrosa.

1. Para ver o trabalho do artista, por favor, consultar: davidgoncalveses @instagram

Artworks

Imagens da inauguração