A Água como fonte de Comunidade  – residências artísticas 2024

Catálogo da Exposição – Desaguar

A Água como fonte de Comunidade – Residências Artísticas 2024 é um programa promovido e organizado pela RAMA – Residências Artísticas com o apoio da Câmara Municipal de Torres Vedras, contempla três bolsas de criação artística em contexto local para três artistas nacionais ou estrangeiros que residam ou trabalhem na região Oeste, nos concelhos de Torres Vedras, Alcobaça, Alenquer, Arruda dos Vinhos, Bombarral, Cadaval, Caldas da Rainha, Lourinhã, Nazaré, Óbidos, Peniche, Sobral de Monte Agraço.

As bolsas incluem alojamento, atelier e tutorias, apoio financeiro para os projetos, curadoria e exposição dos projetos nos estúdios da RAMA e em lavadouros públicos no território envolvente, mais a publicação de um catálogo online bilingue.

Artistas Bolseiras: Runa Marie-Dubrow, Beatriz Pereira, Paula Gibert Roset.

Artistas participantes na exposição final da Residência: Runa Marie-Dubrow, Beatriz Pereira, Paula Gibert Roset, Maria João Ortigão Ramos, Elisabete Gonçalves, celine s diaz.

A Residência Artística realizou-se de 3 de Outubro a 15 de Dezembro de 2024, com tutoria da curadora Ana Anacleto, do artista Paulo Brighenti e com a visita do curador Jorge Reis da Associação EMERGE e do artista Manuel Botelho.

A Residência Artística com a duração de dois meses, em contexto rural no território das aldeias de Alfeiria e de Maceira, Concelho de Torres Vedras, em ambiente imersivo e colaborativo, focando a capacitação das/dos artistas e a construção de memória cultural, na partilha com os pares, no cruzamento entre práticas e linguagens artísticas, e no contacto com a comunidade local, o património e as tradições da região.

Curadoria da exposição: Ana Anacleto.        Estúdios da RAMA – Residências Artística, aldeia de Maceira, Torres Vedras.

 

Texto da Exposição - Desaguar

DESAGUAR

Observar o correr da água de um rio, acompanhar o seu percurso, permitirmo-nos medir o tempo e adivinhar a meteorologia ou o ciclo das estações do ano a partir do seu (maior ou menor) caudal, perceber e registar a forma hábil como vai escorrendo na paisagem, ajudando (simultaneamente) a desenhar essa paisagem, distinguir as nuances da sua cor, a sua opacidade e nível de transparência, poder identificar nela um universo de seres viventes e não viventes que usam a sua cadeia movente para as suas várias deslocações geográficas e adivinhar nela tudo aquilo que não conseguimos ver mas podemos imaginar.

Este é, para nós, um dos extraordinários privilégios de uma possível relação atenta com a água. A máxima valorização das suas características químicas – que a transformam num dos mais valiosos componentes de todas as matérias vivas – mas também os aspectos inerentes ao seu comportamento físico na relação com o mundo.

Os estados físicos da água, a sua capacidade de se metamorfosear, ou a forma como escolhe manifestar-se na relação com os outros elementos, constitui-se como um extraordinário território de exploração e observação, que nos parece atrair grandemente os artistas visuais implicando-se na permanente relação negocial que estabelecem com as matérias.

O termo “desaguar” que titula a exposição – e que assinala a terceira edição do projecto de residência A Água como Fonte de Comunidade, criado pela RAMA e generosamente suportado pelo programa de apoio da Câmara Municipal de Torres Vedras – aponta justamente para esta ideia de escorrência, de metamorfose e de fusão que acontece à água de um rio aquando da chegada à foz.

Este momento de encontro entre as duas águas (a do rio e a do oceano) – que são na realidade e em absoluto, a mesma – é extraordinariamente mágico. 

O termo “desaguar” serve-nos também, metaforicamente, para nomear esse gesto de encontro dos artistas em residência com o lugar que os acolhe – a RAMA – e que é muito mais do que um espaço, uma arquitectura ou um território. É um lugar-contexto, um lugar-momento e um lugar-tempo. A intensidade desse encontro é grandiosa, pujante, pulsante e muito marcada por uma procura incessante dessa fusão, que tão bem nos aproxima da água do rio que se espraia na água do mar.

Num belíssimo poema acerca da água, o poeta Ruy Belo refere que “Um rio é a infância da água.”, e mais adiante acrescenta não haver maior prazer que o de assistir “(…) à morte de um rio que envelheceu a romper pedras e plantas, que lutou, que torneou obstáculos.”[1].

A foz, onde o rio vem desaguar, entendida como esse lugar de morte, de fim de um percurso para permitir dar início a algo novo, agora colectivo, partilhado, resultado dessa fusão de águas múltiplas. E a RAMA como esse lugar onde desaguam percursos, histórias, desejos e visões múltiplas, e onde se operam metamorfoses colectivas ao ritmo do correr da água.

O resultado que agora apresentamos manifesta-se como esse lugar de encontros e de fusões várias, e assume o abraço alargado a um conjunto de outras artistas que, não fazendo originalmente parte do projecto, foram assimilando e sendo assimiladas, decidindo – de forma bastante simbiótica – integrar este gesto colectivo.

Paula Gibert Roset desenvolveu a sua investigação a partir de um equipamento público urbano (hoje em dia em desuso, mas ainda muito presente nas freguesias de Maceira e Alfeiria): os lavadouros públicos. Interessou-lhe trabalhar a partir das marcas visíveis e invisíveis deixadas na arquitectura, nos dispositivos e nos objectos. Trabalhando com materiais próprios do universo da limpeza e da lavagem – sabão natural, lixívia, soda cáustica, glicerina ou bicarbonato de sódio – estabelece uma relação evocativa entre os gestos de cuidado (naturalmente associados à lavagem da roupa) e os gestos de cuidado (naturalmente associados à preservação da memória).

Durante a sua estadia, a dupla Runa Marie-Dubrow e Beatriz Pereira criaram um conjunto de objectos fílmicos e performativos em interação muito directa com as restantes artistas em residência. Numa inquietação permanente e, recorrendo à sua condição de artistas-bailarinas-cineastas-coreógrafas-educadoras-investigadoras-criadoras, conseguiram articular de forma muito experimental as suas preocupações políticas e poéticas, testando e alargando consistentemente o seu pensamento plástico e o seu léxico de gestos e movimentos.

celine s diaz traz consigo uma sensibilidade particular. A atenção que dedica à natureza, ao ecossistema marinho, às formas de vida, à água e aos segredos nela guardados, permitem-lhe munir-se de um conjunto de ferramentas visuais (gráficas, fotográficas ou textuais) para a produção de instalações têxteis e pequenos livros que parecem funcionar como relicários. Memórias, sonhos e ficções estão presentes na procura de tradução e fixação de rituais, tradições orais e crenças animistas que foi recolhendo junto de comunidades costeiras saloias.

Também num gesto de levantamento e aproximação a processos ritualistas e de valorização de um olhar poliédrico em relação ao mundo fora de si, Elisabete Gonçalves, vem desenvolvendo um trabalho desdobrado e amplamente indisciplinado (fora do enquadramento disciplinar que habitualmente organiza as chamadas ‘Belas Artes’). A energia geradora que alimenta a sua imensa produção está amplamente alicerçada na sua experiência, na sua vida, e é atravessada por uma hiper-percepção sensorial que se estabelece a partir da experiência do corpo. A recuperação de gestos ancestrais, a descoberta de novas formas a partir de símbolos e signos universais e a permeabilidade das matérias naturais e orgânicas marcam a imensa cosmologia de objectos que vem produzindo.

A prática de Maria José Ortigão Ramos tem vindo a ser marcada por uma coreografia de gestos físicos repetidos, rigorosos e exigentes. A sua relação com a gravura – técnica de impressão manual que implica inúmeras fases e processos sistematicamente repetidos – é longa e muito estruturadora das suas decisões e resultados plásticos. O seu ‘desaguar’ na RAMA permitiu-lhe entender este lugar (que implica um tempo, um espaço, mas também um contexto especial) como um laboratório expandido de criação. A sua obra parece-nos ter adquirido um carácter menos programático abraçando, com grande felicidade, factores de maior imprevisibilidade e risco, aproximando-se mais de um processo em permanente mutação e permitindo-se, a si própria, o lugar da metamorfose, da fusão no ecossistema (humano, animal, vegetal, espiritual, ficcional), valorizando e reconhecendo sempre a dimensão lúdica inerente a essa procura.

Como no poema de Ruy Belo, a foz é onde se opera “(…) o convívio com a distância, com o incomensurável. É o anonimato.”.

Ana Anacleto

Dezembro 2024

[1] Ruy Belo, “A morte da água” in “Homem de Palavra(s)”, Lisboa: Assírio & Alvim, 2011

Runa Marie Dubrow

Outubro, Novembro, Dezembro 2024

O projeto conjunto “The Future is Dry”, das artistas Runa Marie Dubrow e Beatriz Pereira, baseia-se numa curta-metragem filmada em 2022 numa piscina vazia. Aborda a alarmante previsão de que, em 2050, um terço da população mundial enfrentará uma escassez extrema de água - uma realidade que muitas pessoas já estão a viver. “The Future is Dry” é um projeto de instalação visual de dança que visa sensibilizar para a escassez de água e para as questões ambientais. Utilizando vídeo, som, luz e movimentos expressivos, o projeto apresenta um tema profundo sem quaisquer embelezamentos.

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Maria José Ramos

Outubro, Novembro, Dezembro 2024

Tem explorado trabalhos com características geométricas, realizados com recurso a prensa de gravura. Monotipias sobre papel com tintas de gravura, utilizando máscaras (acetato, cartão, tecido, ...) que produzem não múltiplos, mas peças únicas, explorando o erro e o acaso.

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Beatriz Pereira

Outubro, Novembro, Dezembro 2024

O projeto conjunto “The Future is Dry”, das artistas Runa Marie Dubrow e Beatriz Pereira, baseia-se numa curta-metragem filmada em 2022 numa piscina vazia. Aborda a alarmante previsão de que, em 2050, um terço da população mundial enfrentará uma escassez extrema de água - uma realidade que muitas pessoas já estão a viver. “The Future is Dry” é um projeto de instalação visual de dança que visa sensibilizar para a escassez de água e para as questões ambientais. Utilizando vídeo, som, luz e movimentos expressivos, o projeto apresenta um tema profundo sem quaisquer embelezamentos.

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Elisabete Gonçalves

Outubro 2024

Projeto entre pintura, desenho, escultura e instalação. Objetos e organismos encontrados, quebrados ou em transição. Ensaio, reparar, recontextualizar, construir, fragmentos do corpo, ritual, prender, marcar, simbolismo, descobrir, riscar, energia, morte, procura, lugar.

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Paula Gibert Roset

Outubro, Novembro, Dezembro 2024

Reunir desenho, instalação, fotografia, vídeo e som, juntos exploram o interesse em traçar momentos afetivos do passado que muitas vezes não deixaram vestígios e, quando os deixam, são quase impercetíveis. O objetivo é investigar e explorar os espaços onde a água cria o ponto de encontro na comunidade e extrair das paredes, do chão e dos objetos encontrados as histórias que contêm. A história de Calvino sobre a cidade de Zaira serve de premissa para imaginar, conversar e fabular sobre momentos afetivos passados tanto em torno das fontes como nos lavadouros públicos.

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celine s diaz

Outubro, Novembro, Dezembro 2024

Colecionei memórias de água (ritos, relação prática e económica) de pessoas entre 76-82 anos para criar um guia de re-conexão com a água e expressar profundidades de quem ativamente vive a água. Enquanto desdobrei essas relações, reuni na poesia, fotografia, escultura e no bordado um mapa-guia abstrato para a relação com a água que salientasse a conexão emocional—de modo a que se alimente, renove, reinvente a ligação e que se possa re-escrever a sua importância na vida diária. A instalação final reflete a natureza líquida da memória, como a guardamos, transportamos, encarnamos.

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Exposição, Obras e Pesquisa