A água como fonte de comunidade – residências artísticas 2023

Catálogo da Exposição – Água não Controlada.

Pesquisas e  obras.

O programa “A água como fonte de comunidade”, promovido e organizado pela RAMA – Residências Artísticas de Maceira e Alfeiria, com o apoio da Câmara Municipal de Torres Vedras, contempla bolsas de criação artística em contexto local para artistas que residam ou trabalhem nos Concelhos que compõem a Região Oeste.

Artistas participantes: dupla de artistas Madalena Lopes e Léo Raphaël, Sara da Graça Santos, Paulina Dornfeldt, Tiago Leonardo. 
 

A Residência Artística realizou-se de 10 de Janeiro a 27 de Fevereiro, com tutoria da curadora Ana Anacleto, do artista Paulo Brighenti e de artistas convidadas/os, Cristina Ataíde e Noé Sendas.

O programa de bolsas pretende incentivar, através de pesquisas, quanto da criação de obras de arte contemporânea, a vivência comunitária numa atenção mais focada sobre a condição hidrográfica da região que é um fator do desenvolvimento agrícola, e que se reflete em todas as atividades humanas, desde a casa, à vinha, a outras culturas, bem como estando presente no imaginário coletivo das populações e na relação destas com as práticas espirituais, ritualistas e costumes autóctones.

Curadoria: Ana Anacleto.        Estúdios da RAMA – Residências Artística, aldeia de Maceira, Torres Vedras.

Texto da Exposição - Água não controlada

Water is taught by thirst;

Land, by the ocean passed;

Transport, by throe;

Peace, by its batles told;

Love, by memorial mould;

Birds, by the snow.

– Emily Dickinson (1896)

Retenhamos a belíssima proposição esboçada no poema de Emily Dickinson: a possibilidade da tomada de consciência de um determinado elemento se fazer a partir, justamente, da sua ausência.

Tomar consciência é reconhecer. Voltar a identificar o que já conhecemos (de antemão, numa primeira instância) para poder nomeá-lo. E, na proposição de Dickinson, esse reconhecimento produz-se em função do que nos falta. Reconhecemos o que não temos, reconhecemos o que não vemos, em suma, reconhecemos o que desejamos.

Ao percorrer o território, maioritariamente rural, das freguesias da região de Torres Vedras é inevitável repararmos nas inúmeras bicas de água públicas que servem, desde há muitas décadas, as populações locais nas suas mais diversas actividades. Nestas bicas públicas é frequente a presença de uma placa de sinalização com a frase “Água não controlada”, advertindo para a não potabilidade daquela água e para a perigosidade da sua utilização inadvertida.

Propomo-nos entender agora esta noção de “água não controlada” (para além da sua função prática), na sua dimensão metafórica, como uma tentativa de aproximação ao próprio acto criativo. Inscritos numa matriz judaico-cristã somos educados no sentido  da valorização do acto da criação e sabemos que em vários momentos da história da humanidade este aparece associado justamente à água e às suas várias manifestações. O acto criativo, ou o gesto criador, como uma espécie de torrente líquida incontrolável, sem limites e que se alimenta imensamente da falta, do desejo, da procura, da investigação, da crença e, simultaneamente, de uma incansável tentativa de contenção e controlo.

As manifestações da presença da água (mas também a sua ausência, a sua falta) têm orientado e determinado, através dos séculos, a organização das populações, as suas estratégias de sobrevivência e as suas actividades laborais, e neste sentido proporcionado a edificação de processos comunitários de partilha e interacção altamente devedores de uma prática interseccional e simbiótica entre todos os seres viventes e não viventes, religiosos e pagãos, existentes e ficcionados.

O equilíbrio (inevitavelmente tenso) gerado por estas relações simbióticas e cúmplices parece garantir a estabilidade das comunidades e proporcionar-lhes uma condição social que lhes permite viver muito para além de (sobre)viver.

As várias ideias esboçadas aqui (falta, desejo, procura, simbiose, equilíbrio, auscultação, observação e interacção) e a permanente disponibilidade e sentido de curiosidade para com o meio ao seu redor (a comunidade e a sua integração nela) parecem ter norteado algumas das investigações desenvolvidas pelos quatro artistas agora a trabalhar no âmbito do projecto de residência “A água como fonte de comunidade”.

Sara Graça Santos, através de uma prática diária da caminhada, da observação atenta à natureza e aos seus micro-acontecimentos, e de um forte comprometimento religioso, desenvolveu um conjunto de obras em torno das ideias de ausência e presença da água e dos valores simbólicos a ela associados.

Paulina Dornfeldt, pondo em prática uma ideia de despojamento aliada a uma dimensão espiritual e a uma relação cúmplice com a natureza, desenvolveu interessantes explorações em torno do uso de pigmentos naturais para a produção de pinturas – objecto. Com tímidas incursões no universo espiritual do shamanismo, estas pinturas conjugam a sua dimensão artística e estética com a sua função ritualista.

Tiago Leonardo, num registo centrado numa investigação em torno da imagem e dos seus desdobramentos, propõe-nos uma aproximação à água enquanto matéria física de reprodução das imagens (a água como espelho, como superfície reflectora e agregadora das partículas lumínicas que estão justamente na origem da proto-fotografia).

Madalena Lopes e Léo Raphaël desenvolveram uma muito interessante exploração em torno das possibilidades adivinhatórias atribuídas ao “vedor” (comummente identificado como aquele que possui qualidades intrínsecas para pesquisar e identificar nascentes de água). A sua curiosidade, disponibilidade mental e a forma generosa e poética como se entregaram ao território, permitiu-lhes desenvolver um conjunto de elementos escultóricos, visuais e espaciais que se oferecem ao espectador como uma experiência verdadeiramente imersiva.

Propomos então o retorno ao poema de Dickinson, e ao quanto a sua proposição nos parece agora ainda mais clarificadora. O processo de leitura de uma obra de arte é, também ele, um processo de reconhecimento marcado em grande medida pela falta, pelo desejo. Projectamos nesse processo de reconhecimento muitas das nossas inquietações e questões, projectamo-nos enquanto sujeitos (com o quadro de valores sócio-culturais que trazemos connosco) e assumimos esse encontro (o encontro com o conhecimento) como uma resposta para aquilo que justamente nos falta. Uma espécie de sede que nos faz encetar um processo de procura não controlada … na inevitável direcção da nascente de água.

Ana Anacleto

Fevereiro 2023

Tiago Leonardo

"Esta residência parece a oportunidade perfeita para continuar a minha pesquisa, sendo que para tal gostaria de dar um passo atrás na tecnologia de produção de imagens – parte seca das mesmas como lhe chama Jeff Wall – experimentando as possibilidades de explorar a condição líquida destas– em duplo sentido – através de um retroprojetor, num jogo de camadas, transparências e opacidades - acreditando também que só a imersividade da escala de uma projeção fará jus ao que aqui se pretende explorar, não deixando de pretender complementar todo este projeto com elementos “físicos”."

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Madalena Lopes e Léo Raphaël

O projecto que propomos desenvolver no contexto da residência artística da RAMA, procura explorar a inteligibilidade das coisas tanto textualmente como sensorialmente. Adopta uma abordagem entre a ficção e o documentário, nas aldeias de Maceira e Alfeiria. Através de investigação no local e da recolha de testemunhos da comunidade tencionamos criar uma série de objectos que interliguem mitos, rituais e conhecimento esotérico relacionados com o encontrar de água. Como ponto de partida recorreremos ao rabdomante e consideraremos fenómenos místicos como refúgio criativo em vez de os ver como farsas. Num movimento além do visível e tangível, tentaremos sentir a água.

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Sara da Graça Santos

"Observar a água, os seus movimentos e propriedades numa relação intrínseca com o tempo é das atividades que mais me enriquecem como artista. Tenho desenvolvido um trabalho silencioso e solitário nas margens da lagoa de Óbidos onde observo o movimento suave das marés que me permite contemplar a efemeridade das composições que faço com objetos naturais, que disponho e coloco à disposição do tempo e dos movimentos do meio natural. Não lhes dou nomes mas gosto de os olhar como sentinelas."

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Paulina Dornfeldt

“A natureza pode ser ínfima e intrincada ou vasta e de cortar a respiração. No meio, eu sou. Eu sou uma nómada que vive ao lado da natureza. São as formas e texturas que activam a minha inspiração e conduzem a memórias que abrem sempre uma nova direcção. Extraio materiais naturais tais como pigmentos ou carvão vegetal dos locais onde vivo, criando as minhas obras no local, na natureza. As pinturas tornam-se retratos dos próprios lugares, um diário abstracto e, afinal, um retrato do próprio território.”

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Pesquisa

Obras, imagens da inauguração